04 out As eleições de 2022 e as alterações da legislação eleitoral: avanço ou retrocesso? Modificações representam um notável avanço em pelo menos em três sentidos: ao aprofundar o combate a sub-representação das mulheres e negros, ao revogar a autoritária Lei de Segurança Nacional e instituir dispositivos penais em defesa do Estado Democrático de Direito e de dar maior estabilidade as regras sobre partidos políticos
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Câmara dos Deputados.
Como do conhecimento geral, nas últimas duas semanas o Congresso Nacional aprovou uma série de legislações – por meio de emendas constitucionais e alterações da Lei Complementar 64/90 e da legislação eleitoral – que introduziram várias relevantes alterações nas regras do jogo democrático para as eleições de 2022 e, se não houver novas alterações, que devem permanecer também para as eleições gerais de 2024. Ainda que a principal modificação que foi objeto de intenso debate na mídia em geral, e dentre os partidos políticos, parlamentares e estudiosos do Direito Eleitoral, não tenha sido votado pelo Senado Federal a tempo – a modificação e introdução de um novo Código de Direito e Processo Eleitoral – essas alterações, já em vigor a tempo de valerem para as eleições de 2022, também introduziram relevantes modificações que, ao nosso ver, foram, em sua maioria, positivas para a consolidação do Estado Democrático de Direito, sobretudo nesse momento de espectros golpistas que por aí se expõe, sob a liderança do presidente Bolsonaro, sua família e seus acólitos radicas – não à toa denominados “bolsominions”.

A primeira grande modificação se fez pela Emenda Constitucional 111/2021, que alterou os arts. 14, 17, 28 e 82 da Constituição Federal. No caso do art. 14, foram introduzidos aos parágrafos 12.º e 13.º, elevando a status constitucional a possibilidade de realização de plebiscitos e referendos nas eleições municipais, a respeito de quaisquer assuntos de interesse local que, para serem votados concomitantemente à essas eleições, devem ser aprovadas pelas Câmaras de Vereadores locais e informadas à Justiça Eleitoral com antecedência mínima de 90 dias da data da eleição. Na nossa compreensão, por serem instrumentos essenciais do exercício da democracia direta, essa regulamentação abre uma excelente oportunidade de controle popular direto sobre assuntos de grande impacto e interesse dos Municípios. Por exemplo, é possível deliberar sobre Planos Diretores ou algumas modificações urbanísticas relevantes através desses mecanismos de consulta popular, ou, ainda aprovar outras modificações substanciais da legislação municipal mediante consulta direta, como, por exemplo, o número de vereadores na Câmara (obedecidos os limites constitucionais de vagas) e outros.

Além disso, foi ainda introduzido um parágrafo 6.º no art. 17 – que trata do Regime Constitucional dos Partidos Políticos – estabelecendo em sede constitucional o princípio da fidelidade partidária, reafirmando que parlamentar (deputados federais, distritais, estaduais e vereadores) que mudam de partido em regra perdem o mandato e, mesmo quando a mudança se der por justa causa, o direito de acesso aos fundos partidário e de financiamento de campanhas, bem como os critérios para distribuição de tempo de TV e Rádio para propaganda partidária e eleitoral, respeitarão a bancada efetivamente eleita, independente das mudanças de parlamentares. Por fim, os arts, 28 e 82 da Constituição foram modificados para estabelecer novas datas de posse para os eleitos nas eleições gerais de 2026, que passarão a ser, para os governadores e vice-governadores, o dia 6 de janeiro e para o presidente da República, o dia 5 de janeiro.

Mas as mais relevantes modificações dessa emenda constitucional dizem respeito a adoção de uma política afirmativa mais eficiente no sentido de contundente incentivo para a redução nas disparidades de representação de mulheres e negros nos parlamentos brasileiros. Introduzida pelo art. 2.º da Emenda, a eleição de deputados federais mulheres e negros para a contar em dobro para fins de cálculo da distribuição dos valores do fundo partidário e do fundo especial de financiamento de campanhas; ou seja, se um partido elege 10 deputados homens e brancos, e outro partido elege, por hipótese, 5 mulheres e 5 negros, esse último terá sua bancada contada como valendo 20 para fins de acesso a esses recursos de financiamento da política. Ou seja, serão beneficiados os partidos políticos que investirem e organizarem, de fato, condições de eleição dessas categorias – mulheres e negros – atualmente sub representados no Congresso Nacional. Para se ter uma idéia, mesmo equivalendo a mais de 50% da população, atualmente apenas 14% dos parlamentares na Câmara dos Deputados são mulheres. E, por fim, essa emenda ainda estabeleceu um critério de não sucessão das sanções dos partidos incorporados pelos incorporadores, algo que nos parece correto sob o prisma do Direito Partidário.

A segunda modificação relevante diz respeito a modificação da chamada Lei do Ficha Limpa – a Lei Complementar 64/90, já modificada em 2010 pela Lei Complementar 135/2010 – que vem gerando intensas críticas sobretudo de integrantes do Ministério Público e de algumas ONGs ligadas ao combate a corrupção eleitoral. Nesse caso, a Lei Complementar 184/2021 modificou os critérios para que seja constatada a inelegibilidade fixada pela alínea “g” do inc. I do art. 1º da Lei Original, que fixa uma inelegibilidade de 8 anos para gestores públicos que tenham suas prestações de contas julgadas reprovadas pelos Tribunais de Contas, desde que os motivos da rejeição de contas tenham caracterizado ato doloso de improbidade administrativa. A modificação aprovada apenas agrega a esses requisitos mais um, introduzindo um parágrafo 4º-A nesse art. 1º, dizendo que essa hipótese de inelegibilidade, além dos requisitos já existentes, ”não se aplica aos responsáveis que tenham tido suas contas julgadas irregulares sem imputação de débito e sancionados exclusivamente com o pagamento de multa”. Ou seja, além de constituir ato doloso de improbidade administrativa, no motivo da rejeição da prestação de contas ainda deve consignar que houve alguma forma de desvio de recursos por parte do agente público que teve suas contas rejeitadas – o que constitui um débito a ser ressarcido para a Fazenda Pública prejudicada.

No Código Eleitoral e nas Leis Eleitorais (ainda) e nas Leis em vigor também foram introduzidas várias modificações, pelas Leis Ordinárias 14. 192, 14.197, 14.208 e 14.211, todas de 2021. A primeira dessas leis – 14.192/2021 – estabelece uma verdadeira política de reafirmação da participação das mulheres na atividade político-partidária e de combate à quaisquer formas de violência e discriminação contra as mesmas, através do estabelecimento de normas para fins de “prevenir, reprimir e combater a violência política contra a mulher, nos espaços e atividades relacionados ao exercício de seus direitos políticos e de suas funções públicas, e para assegurar a participação de mulheres em debates eleitorais e dispõe sobre os crimes de divulgação de fato ou vídeo com conteúdo inverídico no período de campanha eleitoral”, como estabelece o art. 1.º da Lei. Daí por diante, essa Lei estabelece uma série de institutos e normas para dar efetividade a esse princípio, tornando ilegal qualquer forma de propaganda eleitoral que “deprecie a condição de mulher ou estimule sua discriminação em razão do sexo feminino, ou em relação à sua cor, raça ou etnia” e, inclusive, criminalizando uma série de condutas que signifiquem qualquer forma de violência ou discriminação política contra mulheres, especialmente por meio de difusão de Fake News. Além disso, ainda fixa obrigatoriedade da presença de candidatas mulheres em debates a serem feitos com candidatos a cargos parlamentares. Essas modificações – supreendentemente não vetadas por Bolsonaro, o que certamente decorre da intensa pressão que sofreu de todos os partidos políticos da sua base de apoio – demonstram um notável avanço no sentido de propiciar, de fato, avanços na participação das mulheres nos cargos políticos.

Já a Lei 14.197/2021 tem uma importância simbólica notável para a consolidação do projeto de democracia da Constituição de 1988 pois, ao mesmo tempo, revoga o entulho autoritário da chamada Lei de Segurança Nacional e, ainda, introduz no Código Penal um Título XII, regulando os “Crimes contra o Estado Democrático de Direito”, desdobrando esse novo Título em três espécies de Crimes, denominados “Crimes contra a Soberania Nacional”, “Crimes contra as Instituições Democráticas”, “Crimes contra o Funcionamentos das Instituições Democráticas no Processo Eleitoral” e, por fim, “Crimes contra o Funcionamento dos Serviços Essenciais”. Além das notáveis mudanças que essa legislação introduz, sobretudo criminalizando todas as condutas, individuais, coletivas e de autoridades que possam alterar ou ameaçar o Estado democrático de Direito, a Soberania Nacional e a regularidade da realização das eleições – praticamente invertendo e superando o paradigma autoritário da revogada Lei de Segurança Nacional – chama a atenção o veto do presidente Bolsonaro a alguns dispositivos que constavam na redação original dessa Lei como aprovadas pelo Congresso Nacional.

O primeiro deles criminalizava o chamado disparo em massa de fakenews (art. 359-O) com capacidade de interferir no processo eleitoral, cuja redação era precisa: “Promover ou financiar, pessoalmente ou por interposta pessoa, mediante uso de expediente não fornecido diretamente pelo provedor de aplicação de mensagem privada, campanha ou iniciativa para disseminar fatos que sabe inverídicos, e que sejam capazes de comprometer a higidez do processo eleitoral”; nas razões do veto, alegou-se que tal dispositivo poderia “criminalizar o debate político”, além de não definir quem seria o autor do crime e por conta da ausência de critérios sobre o que seriam os “fatos inverídicos”, o que exigiria um “tribunal da verdade”. É evidente que a intenção do presidente foi evitar que seu famoso gabinete do ódio, bem como as milícias digitais bolsonarias, especialistas em propagar fakenews, pudessem ser punidas criminalmente especialmente pela notória capacidade que possuem de manipular as disputas eleitorais, bem como destruir reputações de adversários. Ainda, restaram vetadas a possibilidade de manejo de ação penal privada subsidiária pelas vítimas, em caso de omissão do Ministério Público, bem como o crime de atentado ao direito de manifestação, que tornava crime a conduta de “Impedir, mediante violência ou grave ameaça, o livre e pacífico exercício de manifestação de partidos políticos, de movimentos sociais, de sindicatos, de órgãos de classe ou de demais grupos políticos, associativos, étnicos, raciais, culturais ou religiosos”; nesse último caso, reiterando a notória intenção de superproteção das forças policiais que já manifestou ao propor a “excludente de ilicitude” para ações violentas da polícia, Bolsonaro alegou dificuldade de definição do que seria uma “manifestação pacífica”, entendendo que essa “indefinição” poderia dificultar o trabalho repressivo das polícias e agravar a possibilidade de violência em manifestações populares. Como evidente, esses vetos ainda podem ser derrubados pelo Congresso Nacional, e há ampla movimentação da sociedade civil e dos partidos políticos, mesmo os de situação, nesse sentido.

Por fim, mas duas relevantes modificações. Na Lei 14.208/2021, ao tempo em que restou mantido pelo Congresso Nacional a proibição de realização de coligações partidárias para as eleições proporcionais – regra que já valeu em 2020 e foi apontada pela quase unanimidade dos estudiosos da democracia como fundamental para o aprimoramento dos partidos – institui a possibilidade da realização de federações partidárias, a serem celebradas entre partidos que, por não ultrapassarem as chamadas cláusulas de barreira, correm o risco de ver reduzido seu direito de acesso a maior parte do recursos dos fundos partidário e de financiamento de campanha, bem como ao tempo de rádio e TV para fins de propaganda partidária e eleitoral. Basicamente, a federação implica numa fusão temporária dos partidos, a ser celebrada pelos diretórios nacionais, com duração mínima de 4 anos e que, nesse período, significa que esses partidos, unidos, funcionarão como se fosse um só. Para tanto, devem fixar um programa e um estatuto mínimo, a ser registrado no TSE, e em todas as suas instâncias de atuação – municipal, estadual e nacional – devem atuar como uma instituição única, inclusive no que diz respeito à fidelidade partidária, identificação para os eleitores e responsabilidades eleitorais, administrativas e de responsabilidade civil. E a violação a essas normas implica na proibição, ao partido ofensor, de ingressar em outra federação partidária ou celebrar qualquer forma de coligação nas duas eleições seguintes; sendo que, nesse prazo, ainda fica sem acesso ao fundo partidário. Essa lei for diretamente decorrente da pressão das legendas com atuação histórica – como PCdoB, CIDADANIA (antigo PPS), PV e REDE SUSTENTABILDIADE, entre outros – que, apesar de agirem como partidos de fato e não meras legendas de aluguel, não haviam ainda conseguido ultrapassar as cláusulas de barreira.

Já na Lei 14.211/2021 se instituíram duas relevantes modificações: a primeira, dada pela introdução de uma art. 23-A no Código Eleitoral, efetiva uma limitação ao poder regulamentar da Justiça Eleitoral, especialmente ao Tribunal Superior Eleitoral, limitando que as resoluções – emitidas para regular as eleições a cada dois anos – só possam tratar de matérias previamente regularas em lei, limitando a possibilidade do TSE criar regras e restrições novas, sem base na legislação aprovada pelo Congresso Nacional, de modo a evitar o chamado “ativismo” desse Tribunal que, na visão dos parlamentares, muitas vezes invade uma competência que, a rigor da Constituição, de fato é do Congresso. E, ainda e nesse sentido, essa Lei define uma regra para o preenchimento das cadeiras dos parlamentos – Câmaras Municipais, Assembleias Legislativas e Câmara dos Deputados – nos casos em que o partido (ou a federação partidária) não atingir, com a votação somada dos candidatos, candidatas e dos votos de legenda, o chamado “Quociente Eleitoral”(Partidário), que, no sistema vigente até as eleições de 2018, era o que definia quais partidos elegeriam parlamentares – sendo que só podem se eleger os candidatos que tiverem votação mínima de 10% dos votos do quociente eleitoral. Como é raríssimo que, mediante o quociente eleitoral, todos os votos recebidos por cada partido resultassem na distribuição de todas as vagas em disputa – havendo, portanto, cadeiras/vagas restantes – nosso Código Eleitoral adotava o sistema das maiores médias para distribuir as vagas restantes; mas, até 2020, apenas os partidos que atingissem o quociente eleitoral disputavam essas cadeiras remanescentes do quociente eleitoral. E nas eleições de 2020, as primeiras sem possibilidade de coligação, o TSE e o STF entenderam que os partidos todos que concorreram naquelas eleições podiam disputar as vagas restantes, independentemente de terem atingido o quociente eleitoral ou não.

Com a nova lei, além dos partidos que atingiram o quociente eleitoral, também disputarão as vagas dessas cadeiras remanescentes os partidos que atingirem no mínimo 80% dos votos do quociente eleitoral e, ainda, os candidatos que tiverem atingido no mínimo 20% do quociente eleitoral, sempre através do sistema das maiores médias. Que, importante esclarecer, sempre considera o total dos votos dados a cada partido, não sendo possível se cogitar, juridicamente, de sobras de votos: o que se tem são sobras de cadeiras/vagas em cada parlamento. Por fim, essa lei reafirma que as coligações só podem ser celebradas para as chapas majoritárias, ou seja, para prefeito e vice-prefeito, governador e vice-governador e presidente e vice-presidente da República; ainda restou modificada a legislação eleitoral para diminuir o número de candidatos aos órgãos do poder legislativo para o total de vagas em disputa, mais um. Por exemplo, a Assembleia Legislativa do Paraná tem 54 cadeiras; nesse exemplo, cada partido poderá lançar 55 candidatos – respeitando sempre, como já consolidado, que 30% dessas vagas de candidaturas têm que ser preenchidas por um gênero distinto do majoritário, normalmente de mulheres. Essa lei ainda regulou regras para realização de debates tanto entre candidatos majoritários quanto proporcionais (eliminando a dúvida acerca de como se aprovam as regras desse debate) e fixando que a distribuição do tempo de TV e rádio entre os partidos se dará na proporção de 90% considerando os deputados federais originalmente eleitos pelos partidos e 10% igualmente entre todos – sendo que, em caso de coligação majoritária, valem os deputados dos seis maiores partidos que integram essa coligação.

De todo o exposto, entendemos que essas modificações representam um notável avanço em pelo menos em três sentidos: ao aprofundar o combate a sub-representação das mulheres e negros, ao revogar a autoritária Lei de Segurança Nacional e instituir dispositivos penais em defesa do Estado Democrático de Direito e de dar maior estabilidade as regras sobre partidos políticos, inclusive permitindo a realização das federações partidárias, sem retroceder ao deletério mecanismo das coligações em eleições proporcionais. Mas, sem dúvida e apesar dos frequentes ataques da maior parte da mídia sobretudo no que pertine à proibição das campanhas eleitorais, temos convicção que somente com a aprovação do Código de Direito e Processo Eleitoral atingiremos uma maior maturidade institucional e uma efetiva estabilidade regulatória das disputas eleitorais.

Artigo escrito por Guilherme de Salles Gonçalves e originalmente publicado em 4 de outubro de 2021 -ás 22h23. Disponível na íntegra em: https://www.plural.jor.br/colunas/dialogo-eleitoral/as-eleicoes-de-2022-e-as-alteracoes-da-legislacao-eleitoral-avanco-ou-retrocesso/



Guilherme de Salles Gonçalves - Professor de Pós-Graduação em Direito Eleitoral na EJE-TRE/PR e de Direito Eleitoral e Público na UEL (Universidade Estadual de Londrina), Ex-Presidente (2008/2009 e 2013/2014) e fundador do IPRADE (Instituto Paranaense de Direito Eleitoral), membro fundador da ABRADEP (Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político) e membro do IBRADE (Instituto Brasileiro de Direito Eleitoral). Advogado.